Pouco antes da destituição da ditadura portuguesa do Estado Novo, a 25 de Abril de 1974, o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), então sob a direcção artística do encenador Fernando Gusmão, desenvolveu uma espécie de laboratório de teatro com a participação de José Cardoso Pires como escritor convidado.
O tema base dessa experiência teatral era o da guerra, palavra difícil de usar no nosso país, então envolvido numa guerra colonial de três frentes (Angola, Guiné e Moçambique), circunstância que determinou que a palavra escolhida assumisse um prudente disfarce, no caso apresentando-se como sendo a palavra amor.
O objetivo principal era o da escrita de um texto susceptível de ser representado. Em tempo de censura à criação literária, encontrar peças de teatro era tarefa muito difícil. O Fernando Gusmão acabara de encenar no TEUC a peça “O Asno” de José Ruíbal, cuja primeira versão para português, “O Burro”, seria cortada pela Censura. Não passou como burro mas passou como asno, num truque que a Censura só descobriu mais tarde.
Neste texto de José Ruíbal, o burro (ou asno) é electrónico e é um produto que o tio Sam anda a vender pelo mundo fora, em especial nos países subdesenvolvidos. A sua representação pelo TEUC, com as mensagens implícitas que a Censura não aprovaria, e a forma como o grupo conseguiu tornear a reprovação ao texto inicial, indiciava dificuldades para descobrir um texto base para um futuro novo espectáculo que pudesse ser aprovado. Daí o laboratório de teatro nos moldes já referidos.
Estas dificuldades foram, felizmente, superadas com a chegada do 25 de Abril e já não foi necessário concluir um texto codificado para ser representado, texto onde a palavra amor substituía a palavra guerra. A Censura da ditadura portuguesa do Estado Novo era fonte de desinformação e de fake news, ou seja, de notícias falsas na contraditória expressão inglesa.
Como disse a professora universitária da Universidade de São Paulo, Janice Theodoro da Silva, as fake news são aparentadas com o Teatro – “dissolvem a relação entre o facto e suas formas de representação, separam a realidade da ficção, distanciamento necessário na arte da política”. E nesta lógica, no contexto actual, se alguém desejar negar o facto comprovado de que houve um Holocausto, bastará dizer que ele não existiu num espaço sem perspectiva de discussão onde o critério da verdade é o número de “gostos” e de cliques que consiga alcançar.
Júlio Roldão
Júlio Roldão, jornalista desde 1977, nasceu no Porto em 1953, estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes e pelo Círculo de Artes Plásticas, tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.
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